terça-feira, 3 de outubro de 2017

Extraordinária, proficua e plácida movimentação na Idade Média

Cientistas consideram o mundo.  Bartolomeu o Inglês, "Livro das propriedades das coisas"
Cientistas consideram o mundo.
Fr. Bartolomeu OFM, o Inglês: "Livro das propriedades das coisas", BnF, fr 134, f, 169.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Na Idade Média: vida intelectual, espiritual e moral sujeita a flutuações e cheia de vais-e-vens

Estudando a história, poder-se-ia achar que a vida na Idade Média era muito mais movimentada do que a de nossos dias. De fato parece ser.

A movimentação era, entretanto, num outro campo e por razões diferentes das movimentações de hoje.

A atividade dos corpos talvez fosse menor. Certos homens viajavam muito, mas era apenas uma certa categoria de homens: os mercadores, os estudantes, os nobres.

Mas a maior parte das populações ficava fixa nas cidades. E o geral dos homens viajava muito menos que os de hoje.

Agora, acontece que enquanto a vida física de um homem era menos trepidante, sua vida espiritual, intelectual e moral era muito mais sujeita a flutuações e muito mais cheia de vais-e-vens.

Isso determinava uma diferença de “colorido” na vida medieval.



No homem contemporâneo: fixidez de mentalidade pela ausência de idéias e princípios

Monges cantam o Ofício
Monges cantam o Ofício
Ao contrário, o homem de hoje em dia é habitualmente fixo na sua mentalidade.

Podemos olhar em torno de nós e veremos que são poucas as pessoas que mudaram de mentalidade.

A maior parte das pessoas não muda de mentalidade. A mentalidade que têm consiste em:

– não ter mentalidade, pelo menos explícita,

– ser adoradores desse século,

– levar uma vida agradável,

– procurar, sobretudo, viver como se entende,

– não se impressionar com princípios, nem se deixar guiar por nenhuma espécie de doutrina.

Esse tipo de mentalidade é tão arraigado que podemos contar pelos dedos os pecadores que se arrependeram, ou se converteram, e passaram a ser pessoas de virtude. No homem contemporâneo há uma espécie de regra de fixidez.

Há uma certa categoria de gente que sabemos que é “boa” e que vai naquele passo manso até o fim da vida... E há uma outra categoria que a gente sabe que não presta, e que também vai no passo de louco até o fim da vida.

As categorias são mais ou menos definidas e delimitadas.

Razões da “movimentação” de alma do homem medieval: exuberância de vitalidade e vida segundo idéias e princípios

São Patrício, apóstolo da Irlanda
São Patrício, apóstolo da Irlanda
Na Idade Média não era assim. Vemos, às vezes com espanto, regiões inteiras profundamente católicas que mudam, de repente, e caminham até os extremos da heresia mais declarada.

Vemos também regiões heréticas que se convertem real e profundamente. E homens ímpios que se convertem de um momento para outro.

Mas vemos histórias pavorosas de apostasias de padres que fogem dos conventos e fazem coisas medonhas. Pessoas que eram boas e viviam na vida de família mas que apostataram.

Esta ‘movimentação” se deve a alguns fatos:

Em primeiro lugar, a vitalidade do homem medieval era muito mais exuberante.

Em segundo lugar, o homem medieval tinha mentalidade e idéias. Quando se tem mentalidade e idéias é possível mudar-se de uma para outra.

Missa. Missal de Jean Rolin, século XV
Missa. Missal de Jean Rolin, século XV
O homem medieval exibia uma ‘movimentação” intelectual e religiosa que se devia a alguns fatos:

Em primeiro lugar, a vitalidade do homem medieval era muito mais exuberante.

Em segundo lugar, o homem medieval tinha mentalidade e ideias. Quando se tem mentalidade e ideias é possível mudar-se de uma para outra.

Hoje, pelo contrário, há exatamente uma carência de idéias.

Sobretudo o que há é que o homem contemporâneo é de uma dureza de coração, especialmente no que diz respeito ao bem. Ele absolutamente não muda. As manifestações de virtude mais palpáveis não o comovem.

Podemos ter o exemplo disto em torno de nós. 

Por vezes, pessoas que não fazem mal a ninguém e que dão a todos o exemplo da virtude, bons filhos, bons irmãos, procedem bem em todas as coisas mas não obtêm a simpatia de ninguém.

Qual a razão disto? Endurecimento... O espetáculo da virtude não comove, não impressiona; a virtude não é simpática, não atrai nenhuma espécie de simpatia.

Outro motivo de endurecimento de alma: o mito do “cidadão maior” e independente

Isto se prende também ao mito do “cidadão maior”, investido em todos os seus direitos civis. A primeira coisa que este cidadão pseudo-livre precisa ter é que ninguém mexa em sua cabeça. Ele é inteiramente independente. Ele tem uma idéia e não muda; toma uma atitude e não liga para ninguém.

Agora, por que ele é independente senão para ser burro sozinho, para ser um celerado sozinho? Ele tem sua independência, ele a mantém.

Resultado: a voz da graça lhe fala e encontra fechadas as portas de seu coração! Ele absolutamente não se comove.

Cristãos contra mouros. Cantigas de Santa Maria, El Escorial.
Cristãos contra mouros. Cantigas de Santa Maria, El Escorial.
As Cruzadas foram um exemplo de ressonância da voz da graça e da voz do passado, na Idade Média.

Pelo contrário, na Idade Média encontramos a possibilidade de ressonância da voz da Igreja, como também da voz do passado, de um modo prodigioso.

É curioso ver como os bons exemplos, como certas situações, como certas crises sociais, impressionavam. E não era só o bom exemplo do rei. Era o bom exemplo dado por qualquer um.

Exemplos:

– As Cruzadas, em grande parte, foram determinadas pelo contágio de alguns bons exemplos.

– São Bernardo, quando entrou para o convento de Cister, levou consigo, de uma vez, cerca de vinte ou trinta cavaleiros.

Por toda parte notamos que um, tomando uma posição, uma porção de outros se impressionam e seguem, porque ir atrás de um outro não era uma vergonha, sobre tudo quando exibia objetivos, ideias, doutrinas e projetos santos.

Foi preciso chegarmos ao século XX para se decretar que ir atrás de um homem como São Bernardo é uma vergonha.


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