segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Refinamento dos costumes e alimentação abundante

Reencenação de um jantar dos castelões, hóspedes, empregados e viajantes. Castelo de Amorosa, Califórnia.
Reencenação de um jantar dos castelões, hóspedes, empregados e viajantes.
Castelo de Amorosa, Califórnia.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Na Idade Média, o refinamento dos costumes fez grandes avanços.

Não só eram gerais hábitos elementares como o de lavar as mãos antes das refeições — na parábola do mau rico, vemo-lo impacientar-se porque a mulher, lenta ao lavar as mãos, o retarda na ida para a mesa —, mas ainda eram cultivados certos preciosismos, como o uso de taças para lavar as mãos na mesa.

O Ménagier de Paris dá uma receita “para fazer água de lavar as mãos à mesa”:

“Ponha-se a ferver salva, em seguida escorra-se a água e faça-se arrefecer até mais do que morna.

“Põe-se no de cima camomila, manjerona ou rosmaninho, e se põe a cozer com cascas de laranja. Também as folhas de loureiro são boas”.

Para que se tenha sentido necessidade de fornecer tais receitas, é preciso que as donas de casa tenham levado muito longe os cuidados com o interior da casa e o sentido da apresentação.

As donas de casa deviam estar atentas
para que não faltassem o vinho e as bebidas.
Foto do cortejo histórico na cidade de Asti, Itália.
A mesma obra fornece esclarecimentos sobre a maneira como eram tratados os hóspedes ordinários do lar, quer dizer, os criados, cuja sorte não era para grandes lamentos, a julgar pelos textos da época:

“Às horas pertinentes, mandai-os sentar à mesa e dai-lhes repasto de uma única espécie de carne, largamente e abundantemente, e não de várias, nem deleitáveis ou delicadas, e servi-lhes uma só bebida alimentícia e não molesta, vinho ou outra, e não várias; e admoestai-os para que comam muito, bebam bem e abundantemente.

“E após o seu segundo labor e nos dias de festa, que tenham outra refeição; e em seguida, a saber, nas vésperas, que sejam saciados abundantemente como antes, e largamente; e se a estação o requerer, que sejam aquecidos e postos a contento”.

Em suma, três refeições ao dia, uma alimentação simples mas sólida, e vinho como bebida.

Isto sobressai igualmente nos romances de ofícios, onde se vê os burgueses abastados comerem com os criados à mesa e alimentá-los do mesmo modo que a si próprios, como já não se pratica senão nos nossos campos.


(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)


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segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Festim medieval na corte do Duque de Borgonha

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








Um dia do ano de 1454, Felipe o Bom ofereceu uma festa maravilhosa em seu palácio de Dijon, deslumbrando mais uma vez seus convivas, apenas refeitos dos faustos de seu muito célebre 'banquete do Faisão'. “Point de Vue” estava na festa.

Há muito tempo, sonhei com a culinária medieval. Menosprezada durante o Grand Siècle (século XVII), e tida depois como muito “mediana”, à semelhança de sua época, ela hoje conhece uma recuperação de prestigio.

Nossos paladares, tornados curiosos, abrem-se ao exotismo das culinárias orientais, das quais a medieval é considerada bastante próxima.

Meus fracos a respeito de uma Idade Média de livro de Horas fizeram o restante: resolvi (terá sido um dia; terá sido uma noite?) empreender a viagem.

Para julgar com toda equidade, e para limitar os riscos, escolhi uma das melhores mesas do século XV, a do Duque de Borgonha, reputada por seus faustos e profusão de seus “serviços”.

Provido de um vocabulário rudimentar coligido dos tratados especializados da época (“O Livro de Cozinha” de Taillevent, “O Livro do Lar de Paris”), apresentei-me um dia (uma noite?) do ano da graça de 1454, às portas do palácio ducal de Dijon, barulhento já com os preparativos de um festim de alta categoria.

Banquete. BnF, Ms fr 9002, 18v, século XV
Realizado recentemente em Lille pelo duque Felipe, o Bom, o ‘banquete do voto do Faisão’ atestava que a augusta Casa não tinha perdido a mão (para realizar bons pratos).

Encorajado pelo brilhante precedente de Lille, fiz-me acompanhar por um convidado de importância, o qual quis apresentar-me no palácio como o representante honorário de um longínquo país, do qual, por discrição, calarei o nome.

Tão logo introduzido na imensa sala de paredes recobertas por tapeçarias de mil cores, não pude deixar de ficar deslumbrado.

Sobre uma das mesas onde chamejavam tochas e velas, dispunham-se já vários 'entremets' de uma desconcertante criatividade: decorações mirabolantes, guarnecidas ou não com manjares atraentes, 'quadros vivos' ornados com assombrosos artifícios mecânicos.

Isso era só o prelúdio do espetáculo, pois as festas com 'entremets' incluíam também, disso lembrava-me, bastante outros intervalos refinados e surpreendentes, próprios a exaltar a munificência do príncipe, bem como a permitir aos convivas retomarem o fôlego entre dois serviços, entre dois pratos.

“Eu buscava valentemente o sabor das especiarias”

O duque, trajando um hábito preto e cinza, cintilante de pedras inestimáveis, foi sentar-se sob um dossel de ouro e de veludo.

Sua mesa, na qual tomavam lugar a seus lados os convidados de honra, estava recoberta dessa pesada toalha de cetim branco que, aos poucos, suplantou os tapetes outrora reservados para esse uso.

A abundância estava, como eu esperava, presente ao encontro.

Pratos anunciados com trompetes.
BnF, Ms fr 9002, 18v, século XV
Os convivas estavam dispostos segundo as conveniências e também segundo o lugar que o duque entendia, para fazê-los jogar no seu tabuleiro. Naturalmente fui colocado junto a meu mentor, a quem chamarei o conde de X.

Diante de nós, algumas taças de estanho (as da alta mesa eram de prata) e, como únicos talheres, uma faca e uma colher indispensável para os ‘molhos de pratos compostos'.

À guisa de pratos, grossas fatias de pão (as trinchadeiras ou ‘pães de corno') que partilharemos alegremente com nossos vizinhos e sobre os quais disporemos as iguarias. Braçadas de flores cobriam o chão.

Cachorros corriam por entre as mesas, esperando alguma dádiva.

Abandonando, de momento, frutas e petiscos açucarados, eu buscava valentemente o sabor das especiarias, que deveriam recrear-me o paladar durante toda a refeição: canela, gengibre, cardamomo, noz moscada, pimentas redondas, estragão, ‘pó do duque', cravos da Índia.

Ao todo perto de vinte e cinco espécies, sem contar as ervas e os vinagres.

Abri o apetite com algumas rãs fritas e caracóis ensopados; provei alguns ovos assados com manjerona, açafrão e queijo; servi-me de outros, mais rústicos, cujas gemas tinham sido cozidas sobre a brasa, em suas cascas.

Provei do conteúdo dos potes, depois abordei a longa série dos patos, logo as terrinas de vitela, de boi e de peixe, até chegar aos pombos ao gengibre, arenques em guisado de ostras, filhotes de ganso com toucinho, todos recheados com pasta.

Para concluir essa primeira volta, acompanhada já de pães de toda ordem, tentei a sorte com alguns pastéis de moela de boi, e refresquei-me com um bocado de salada de fígados de ave.

Embalado pela música, cânticos e danças, a cintilação dos adornos, as tapeçarias vibrantes sob o ouro das chamas, eu permanecia seduzido pelos 'entremets', que tinham desde o começo atraído meu olhar ou que no-los traziam entre dois serviços...

O "banquete do faisão" ficou célebre. Paris, Ms LDur 456, 86r
Patés engalanados com folhas de ouro, tortas encimadas por pendões dos senhores presentes à festa, galinhas recheadas, elas também reluzentes, a cavalo sobre um porco recheado, coberto de armadura e levando lanças; depois, chave do 'espetáculo’, cisne com cobertura de ovo, assado no espeto, e recoberto de sua plumagem.

Bico e patas douradas, revestida de um manto com brasão, a ave repousava sobre um 'prado ervoso' de pasta verde.

Lembro-me também de um jogral, rodeado de seu público e tocando diversos instrumentos, tudo feito de massa passada ao forno.

Mais longe, acredito bem que uma serpente lutava contra uma pomba numa torta que representava a arena...

En passant par le borgogne...

Abordava eu com energia aquilo que constituía o coração do assunto; falo dos assados.

Nada distinguia mais a culinária de Corte do que o modo de preparar e de comer as carnes. Para longe a carne cozida em água, que constituía o ordinário... das gentes ordinárias.

Eu vi, dispostas em grandes salvas de prata levadas pelos escudeiros trinchadores, peças de boi, carneiro e também de porco, prato de luxo.

Nada ou quase nada de manteiga para esses assados, e muito pouco de molhos; bastante apetecíveis, mas condimentados e de preponderância ácida.

Ondas de suco de uva verde em contrapartida; suco este e o de laranja amarga que eu preferia aos misturados com frutas espremidas ou açúcar.

Apreciando bastante a carne cozida ao natural, regalava-me ao final das contas.

Com o paladar animado pelas especiarias, eu prestava honras sem me envergonhar, ao borgonha que se vertia nas taças colocadas diante de nós, reservando a cerveja para um outro conviva.

Apesar da magnificência do espetáculo e dos arranjos, o conde não pôde impedir-se de evocar as maravilhas inigualadas de Lille: tal como aquele cervo branco bem vivo “cantando” por um artifício, o conde ainda tinha saudades disso.

Ms.Histoie du Grand Alexandre, Paris, século XV
Bebia na taça que compartilhava com meus vizinhos, sendo que os convivas de menor condição bebiam em potes. Os vinhos tintos predominavam, vindos da abadia de Clos-Vougéot.

Chegou o momento dos pratos que denominaremos 'compostos', e que, de fato incluíam tudo, fora os assados.

Fiquei um pouco decepcionado por não provar dos pavões recheados, tartarugas fritas com groselhas, quitutes de cervos e de veadinhos, reservados sem dúvida para mais altas ocasiões.

Proporcionei-me, entretanto, alguns bocados de garça real, petisquei um cominho de amêndoas particularmente detectável, abordei peixes de mar e de água doce, carnes de caça generosamente amadurecidas – das quais muitas seriam atualmente proibidas – miúdos e entranhas em promiscuidade.

Tudo isso combinado com legumes esparsos, ou regados... de especiarias, molhos perfumados com ervas, acentuados com ‘mosto ardente' (nossa mostarda), suavizados por vinhos de colheitas adequadas, em sua maior parte engrossados com miolo de pão e ovo: modesto ante-gosto de nossos 'fundos de molho'.

Depois de ter prestado honras aos queijos do lugar, provei o pão de especiarias que há muito tempo diz-se que foi inventado em Dijon.

Experimentei o 'bosquezinho', espécie de pudim de maçãs e passas, interessei-me em certa torta de frutas, e tomei, como digestivo, alguns grandes goles de hipocraz (infusão de vinho com açúcar e canela).

À maneira de uma competição final de caçada, lambisquei algumas especiarias de câmara, que me deixaram um sabor agradável, e conclui com duas ou três nozes confeitadas.

Depois das civilidades de uso no palácio, agradeci ao conde de X. A partir do dia seguinte (era um dia? era uma noite?), resolvi, com o ardor do neófito, converter-me às refeições medievais, reservando-me o reduzir um pouco os arranjos e de não forçar demasiadamente, feitas as contas, sobre as especiarias.


(Autor : Remi Sadoux, Point de Vue, Cavenne S.A. Éditeurs, Paris, 1991, nº 2233, pp. 48-49)




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