Vista noturna do centro medieval de Tallinn, Estônia |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Que efeito produz a Idade Média no homem do III Milênio?
Poderíamos mencionar as dezenas de milhões de turistas que vão visitar os monumentos da Idade da Luz que atravessaram os séculos.
Ou do interesse por filmes discutíveis, mas de grande sucesso, ambientados em cenários medievais. Poderíamos falar da Downton Abbey – embora num ambiente não inteiramente medieval – ou “The Crown”.
Mas desçamos a algo mais concreto. O testemunho do jornalista brasileiro Zeca Camargo, perdido em 2017 numa cidade medieval dos Países Bálticos.
Eis o que ele nos conta de seu “passeio medieval em Tallinn”, narrado na “Folha de S.Paulo”.
“Esse lugar é Tallinn, capital da Estônia: tudo ali existe em função de seu passado medieval.
“Cheguei lá tarde da noite e procurei um lugar para comer. Fim do inverno (europeu), os lugares que podem geralmente salvar os turistas — bistrôs, pizzarias e, mais recentemente, hamburguerias artesanais — já estavam fechados.
“Mas lá num canto da grande praça central, uma tocha (e não um neon) dava uma esperança de um prato quente a este visitante faminto.
“Entrei numa sala à luz de velas, onde uma mulher vestida com algo que estava longe de ser um costume moderno logo me ofereceu uma salsicha e uma tigela de guisado.
“O nome do lugar era 3 Dragões — dois cravados na alta parede do lado de fora, como pontudas gárgulas; e o terceiro, segundo ela, estava solto por aí. Foi meu primeiro contato com o ‘humor medieval’, onipresente em Tallinn.
Taverna dos Três Dragões em Tallinn
“Não é muito engraçado ver aquelas pessoas ‘vivendo como antigamente’ — e em alguns momentos você tem a sensação de que está apenas num parque temático daquele período.
“Mas aos poucos você vai penetrando nesse passado — e o que parece apenas cenário vai se tornando, de fato, história.
“Senti isso mais forte ao entrar na igreja do Espírito Santo Puhavaimu Kirik, não muito distante da tal praça central (tudo é muito próximo em Tallinn, como na Idade Média).
“Visitando outros templos da cidade, acabei me acostumando a esse formato de igreja, mas logo que entrei lá senti uma estranheza: sua disposição não é convencional, com uma grande galeria que culmina num altar — ali os fiéis são distribuídos em vários nichos (inclusive alguns em mezaninos) que desnorteiam o olhar cristão convencional.
“Tudo é solene e belo — simples e inesperado. Mais: tudo é autêntico e, por conta disso, você pode finalmente se sentir transportado para séculos atrás.
“A mesma experiência se repete quando você visita a igreja do Domo — com um detalhe a mais: as paredes ali são ornadas com enormes brasões de família em madeira. Definitivamente você não está no Vaticano...
“Os muros que rodeiam a cidade antiga, outra marca medieval registrada, dão a sensação de intimidade e confidência.
“É como se os arcos das torres que você cruza lá e cá estivessem sempre te sussurrando segredos daquelas fachadas que, numa estranha reminiscência, me sugeriam cidades de madeira dos meus jogos de armar da infância...
Um outro restaurante medieval em Tallinn
“As janelas são pequenas e as paredes, grossas. Cones vermelhos cobrem os telhados e portas pesadas escondem rotinas misteriosas que evocam a pergunta: será que muita coisa mudou daquele cotidiano que uma visita museu da História da Estônia — o Guild Hall — nos convida a imaginar?
“Ali vemos banquetes reconstruídos, ouvimos música de alaúdes, quase sentimos o cheiro da cozinha no porão — e por breves instantes nos sentimos mesmo cidadãos medievais.
“Mas aí passamos dos limites dos muros, vemos placas de trânsito que indicam a saída, num moderno ferryboat para Estocolmo ou Helsinki — e o século 21 retoma freneticamente seu lugar”.
Após a brusca queda na banal modernidade, este que escreve e que nunca esteve em Tallinn, foi à procura de fotos no Google Images. Achei, deliciei-me e descobri que há ainda mais tavernas no estilo dos Três Dragões e até mais elegantes.
Mas agradeci interiormente ao jornalista pela viagem que nos proporcionou para aquilo que talvez seja nosso “futuro anterior”, como certo escritor francês não de meu agrado definiu com inteligência.
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