Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
A organização dos lazeres é de base religiosa. Todo feriado é dia de festa, e toda festa começa pelas cerimônias do culto, frequentemente longas e sempre solenes.
Prolongam-se em espetáculos que, dados primitivamente na própria igreja, não tardaram a ser deslocados para o adro.
São as cenas da vida de Cristo, das quais a principal, a Paixão, suscita obras-primas redescobertas pela nossa época.
A Virgem e os santos inspiram também o teatro, e toda a gente conhece o Miracle de Théophile [Milagre de Teófilo], que teve uma voga extraordinária.
São espetáculos essencialmente populares, com o povo por atores e por auditório.
E o auditório é ativo, vibrando a um pequeno pormenor dessas cenas que evocam sentimentos e emoções de uma qualidade muito diferente das do teatro atual, uma vez que não apenas o intelecto ou a sentimentalidade entram em jogo, mas também crenças profundas, capazes de transportar esse mesmo povo até às costas da Ásia Menor, por apelo de um Papa.
Como sempre, é parte integrante a nota paródica, levada muito longe.
Palio de Siena |
Nos nossos dias essas excentricidades fariam escândalo, mas os clérigos não veem mal nenhum, e galhardamente tomam parte nelas.
Não existe apenas o teatro propriamente religioso, e sobre as bancadas levantadas na praça representam-se frequentemente farsas e sotias, ou ainda peças de assuntos romanescos ou históricos.
Quase todas as cidades possuem a sua companhia teatral, dentre as quais ficou célebre a dos clérigos da Basoche, em Paris.
Os festejos públicos têm também o seu lugar ao lado das festas da Igreja.
São por vezes magníficos cortejos, que desfilam pelas ruas por ocasião das assembleias e cortes gerais convocadas pelos reis, e se realizam numa ou noutra das suas residências — em Paris, Orleans — fazendo lembrar os campos de março e campos de maio, para os quais Carlos Magno convocara a nobreza do país em Poissy ou Aix-la-Chapelle.
Nessas ocasiões a corte de França, tão simples em geral, compraz-se numa certa ostentação.
Palio de Siena |
Assim acontece nomeadamente por ocasião da coroação de um rei.
As cidades por onde ele passa após as cerimônias de Reims apressam-se a prestar-lhe uma recepção solene, e essa recepção nada tem de rígido nem de pomposo.
É acompanhada de cortejos grotescos, nos quais saltimbancos e folgazões de profissão, misturados com o público, fazem mil números que pareceriam incompatíveis com a majestade real.
Só se decidiu suprimir essas festas e “palhaçadas do tempo de antanho” por ocasião da entrada de Henrique II em Paris.
Eram ocasião de munificências por vezes inauditas, como fontes jorrando vinho, sobretudo sob o reino dos Valois.
Preparavam-se para elas cozinhas ambulantes, sobre as quais as carnes se amontoavam em enormes espetos.
Foi na mesma época que se tomou gosto pelas mascaradas ou bailes de máscaras, um dos quais ficou tragicamente na memória sob o nome de Bal des ardents (Baile dos ardentes).
Palio de Siena |
Tendo o grupo se aproximado imprudentemente de uma tocha, o fogo ateou-se ao seu traje, e ele teria morrido se não fosse a presença de espírito da duquesa de Berry, que o envolveu nas pregas do seu manto, abafando assim as chamas.
O perigo do qual acabava de escapar não deixou de influir sobre o cérebro já fraco do infortunado monarca, e sobre a enfermidade que o iria atingir.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
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