terça-feira, 19 de abril de 2016

O que comiam os medievais? Passavam fome?

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs





Uma lenda tenazmente arraigada fez do homem da Idade Média um perpétuo morto-de-fome, a ponto de se poder perguntar como é que uma raça subalimentada durante oito séculos e, o que é mais, periodicamente devastada pelas guerras, fomes e epidemias conseguiu sobreviver e produzir ainda rebentos razoavelmente vigorosos.

Em grande parte o erro provém de má interpretação dos termos então em uso.

É exato que na Idade Média as pessoas se alimentavam de ervas e raízes — mas sempre assim foi, pois se designa então por erva tudo o que cresce sobre a terra: couves, espinafres, alfaces, alhos-porros, acelgas, etc.

E por raiz se entende tudo o que cresce dentro da terra: cenouras, nabos, rabanetes, rábanos, etc. Este pormenor foi já posto em relevo, nomeadamente por Funck Brentano.

Houve quem se impressionasse pelo fato de o cardo (chardon) passar então por um prato apreciado, mas na realidade trata-se de alcachofra (cardon), e assim o assunto se torna apenas uma questão de gosto!

Se o camponês ia muitas vezes colher bolota, não era por se mostrar interessado nela para seu próprio alimento, mas para alimentar os seus porcos.

É possível que em certos períodos de excepcional penúria — por exemplo, durante as lutas franco-inglesas, que marcaram o declínio da Idade Média, quando a peste negra veio acrescentar os seus horrores aos da guerra e os bandos devastavam o país cuja defesa deixara de estar organizada — a farinha de bolota tenha servido, como nos nossos dias, como produto de substituição.

Mas nenhum texto nos permite pensar que isso tenha acontecido frequentemente.

Não seria crível que a fome tivesse reinado em estado endêmico na Idade Média.

A fazer fé em Raoul Glaber, cronista de imaginação febril, e que cede facilmente aos efeitos de estilo, tem-se tendência para acreditar que não se passava quase ano nenhum em que, para apaziguar a fome, não se tivesse de recorrer à carne humana e aos cadáveres de crianças recentemente desenterrados.

O monge medieval, ao relatar tais fatos monstruosos, tem o cuidado de não assumir a responsabilidade da afirmação, acrescentando prudentemente: diz-se.

É certo que houve fomes na Idade Média, e que essas fomes foram numerosas, mas a nossa experiência pessoal esclarece-nos plenamente como isso acontece sempre que a ausência ou a insuficiência dos meios de transporte impede que se preste rapidamente auxílio a uma região ameaçada e se permutem os produtos.

Durante a alta Idade Média em particular, quando cada domínio formava pela força das coisas um circuito fechado, as estradas eram ainda pouco seguras, e para garantir a sua manutenção eram exigidas portagens muitas vezes onerosas. Nesses casos, bastava um ano de seca para a penúria se fazer sentir.

É igualmente certo que essas fomes eram localizadas, e em geral não ultrapassavam a extensão de uma província ou de uma diocese.

Mesmo durante o período áureo da Idade Média no século XIII, quando a autarquia dominial foi substituída por trocas fecundas e a circulação se tornou fácil em toda a França, observam-se variações por vezes muito importantes no preço dos gêneros, sobretudo do trigo.

Cada província, cada cidade fixa a sua tarifa de acordo com a colheita local.

Os quadros traçados por Avenel e Wailly mostram, no interior de uma mesma região econômica, oscilações que vão do simples ao dobro, ou mesmo ao triplo, como aconteceu em 1272 no Franco Condado, onde o preço do hectolitro de trigo variou de 4 a 13 francos.

É preciso ainda que nos entendamos sobre o que se designa por fome.

Um texto citado por Luchaire (pouco suspeito de indulgência em relação à Idade Média), de numa obra onde acumula expressamente documentos mostrando a época com características das mais sombrias, pode deixar perplexos os leitores atuais:

“Conta o cronista de Liège que nesse ano (1197) faltou o trigo. Da Epifania até agosto, tivemos de gastar mais de cem marcos para obter pão. Não tivemos nem vinho nem cerveja. Quinze dias antes da colheita, ainda comíamos pão de centeio”. (La société française au temps de Philippe-Auguste, p. 8.)

Se a penúria, para eles, consistia em ter somente pão de centeio, quanto não invejaríamos nós, durante a Segunda Guerra Mundial, a sorte dos nossos antepassados da Idade Média.

Na realidade, a alimentação medieval não era muito diferente da nossa em épocas normais. Naturalmente a base era o pão.

De acordo com a riqueza da região, era de trigo candial, de centeio ou de mistura de trigo e centeio, mas verifica-se que mesmo regiões não produtoras, como o sul da França, utilizam o pão de trigo candial.

Em Marselha, onde o terreno é pobre em trigo e as medidas de exceção para abastecer a cidade são frequentes, a regulamentação muito minuciosa da panificação não prevê farinhas secundárias.

Fabricam-se três espécies de pão: o pão branco, o pão méjan mais grosseiro e o pão integral.

Os preços são fixados segundo uma tarifa rigorosa, estabelecida após exames feitos por três mestres padeiros assistidos por um perito e por homens bons designados pela comuna, tendo em conta os detritos resultantes da moedura, a malaxagem da massa e a cozedura.

Conheciam-se em Paris múltiplas variedades de pães “de fantasia”, dos quais eram mais estimados o de Chilly, o de Gonesse ou pãozinho mole.

Nos locais muito pobres comia-se bolo de aveia, ainda hoje caro aos escoceses, ou de trigo-mouro.

Mas não havia região completamente desamparada, pois a economia de então — a do vasto domínio, cobrindo uma grande região — favorece a policultura.

Não se vê na Idade Média nenhuma região unicamente consagrada à cultura do trigo ou da vinha, e que importe o resto dos produtos de que necessita.

O regime de vastas explorações permite variar suficientemente as culturas, ao mesmo tempo que são consagradas a cada uma delas porções de terra equilibradas.

Roupnel, no seu estudo dos campos franceses (Histoire de la campagne française, p. 366.), observa que o manso (uma ordem de grandeza local, que varia de 10 a 12 hectares modernos segundo a riqueza das regiões) é quase sempre composto de três elementos: campos aráveis, prados, bosques.

Estes apenas representam uma porção muito reduzida, cerca de um décimo da exploração total. A extensão das terras cultivadas é o dobro das terras de pastagens.

Diz ele:

“Este pequeno domínio manifesta-se como um conjunto, e aparece-nos construído à imagem reduzida e completa do próprio território. Não é só a sua imagem, tem ainda a sua vitalidade e duração”.

Os manuscritos de miniaturas, que se inspiram na realidade, são a este respeito muito reveladores, pois em toda parte vemos uma proporção sensivelmente igual de prados, campos e vinhas.

A vinha é cultivada por toda parte em França, o que responde a uma necessidade religiosa tanto como econômica, pois os fiéis, até meados do século XIII, comungam sob as duas espécies, de tal modo que o consumo de vinho para a missa é muito maior do que nos nossos dias.

Algumas das nossas colheitas são, desde essa época, particularmente estimadas: Beaune, Saint-Emilion, Chablis, Epernay. Outras perderam nos nossos dias o renome que outrora possuíam, por exemplo o vinho de Auxerre ou de Mantes-sur-Seine.

Quase em toda parte torna-se necessário defender a produção local contra a importação estrangeira.

Numa cidade como Marselha são tomadas medidas draconianas contra a importação de vinhos ou de uvas provenientes de outros territórios.

Só os condes tinham direito de os importar para seu consumo pessoal. Neste caso, tratava-se provavelmente de vinhos finos da Espanha ou da Itália.

Um navio que entrasse no porto com um carregamento de vinhos ou de uvas expunha-se a vê-lo atirado ao chão, e as uvas espezinhadas.

Nas feitorias ou entrepostos estabelecidos no estrangeiro, é igualmente proibido introduzir vinho da região antes de os mercadores marselheses terem vendido o seu.

A cultura da vinha estava pois muito mais desenvolvida na região marselhesa do que nos nossos dias, e os estatutos da cidade asseguram-lhe uma proteção muito particular: proibição de caçar nas vinhas, exceto para o seu proprietário; proibição de o lavrador levar mais de cinco cachos por dia para seu consumo pessoal, etc.

O vinho foi a bebida essencial da Idade Média. Conhecia-se a cerveja, principalmente a gaulesa de cevada, já fabricada por gauleses e germanos, e também o hidromel.

Mas nada era mais apreciado que o vinho, presente em todas as mesas desde a do senhor à dos criados.

O vinho é ao mesmo tempo um prazer e um remédio. São-lhe reconhecidas toda espécie de virtudes fortificantes, e entra na composição de inúmeros elixires e produtos farmacêuticos, geleias e xaropes.

São também muito apreciados os diversos vinhos licorosos ou licores, em que se puseram a macerar plantas aromáticas: absinto, hissopo, rosmaninho, mirto, a que se adiciona açúcar ou mel.

Antes de se deitarem, era corrente beber uma mistura escaldante de vinho e leite coalhado, que na Inglaterra e na Normandia se chamava posset.

A literatura gaulesa do tempo lhe atribuía toda espécie de poderes, cuja enumeração faria corar as pessoas pudibundas, em todo caso fornecia o calor que faltava então aos apartamentos.

Com exercícios violentos tais como a caça, é certo que o vinho permitia suprir a insuficiência dos meios de aquecimento, no entanto não parece que se tenham feito sentir os males do alcoolismo nem a degenerescência que o acompanha.

Isso deve-se sem dúvida ao fato de nenhuma preparação química e nenhum subproduto adulterado ser então servido como bebida, como também à observação geral das leis eclesiásticas, que permitiam o uso e reprimiam o abuso.

Com o pão e o vinho, havia aquilo a que no Midi catalão se chamava o acompanhamento, isto é, todos os outros alimentos. Contrariamente à opinião generalizada, o consumo de carne era então abundante.

Das investigações levadas a cabo, conclui-se que o gado francês era no século XIII sensivelmente mais importante do que hoje em dia.

Uma pequena localidade pirenaica, que hoje não conta mais de uma dezena de animais de chifres, contava outrora duzentos e cinquenta.

Se bem que as proporções não sejam as mesmas em toda parte, não restam dúvidas de que a criação de gado era praticada de modo muito mais intensivo em França até o dia em que a introdução do gado da América, de menor custo, tornou impossível a concorrência para os nossos criadores.

No que diz respeito ao carneiro, não havia então quinta que não tivesse o seu rebanho, tanto mais que este fornecia aos campos um adubo natural, que hoje se julgou mais cômodo substituir por adubos químicos, o que teve como consequência reduzir consideravelmente o nosso gado ovino.

Sobretudo os porcos eram muito numerosos. Tanto na cidade como no campo, não havia família, por mais pobre, que não criasse pelo menos um ou dois para seu consumo.

A matança do porco fornecia carne e gordura para o ano inteiro, e é uma cena tradicional nos calendários dos meses, tantas vezes esculpidos nos pórticos das nossas igrejas ou pintados nos nossos manuscritos.

Eram conhecidos os processos de salga e defumação, ainda hoje utilizados. Matar o porco era a tal ponto um acontecimento da vida familiar, que só muito tarde se vê aparecerem os salsicheiros.

Mesmo assim, no princípio estes não passam de comerciantes de “pratos preparados”, antes de se especializarem na confecção de salsichas e presuntos.

A corporação dos açougueiros é poderosa desde o início da Idade Média, e é sabido o papel por ela desempenhado nos movimentos populares dos séculos XIV e XV.

Segundo o Ménagier de Paris, o consumo semanal nesta cidade ter-se-ia elevado a 512 bois, 3.130 carneiros, 528 porcos e 306 veados, sem contar o consumo dos palácios reais e principescos, os abatimentos familiares e as diversas feiras de presuntos e outras, que tinham lugar na capital e suas redondezas imediatas.

Também em Marselha é surpreendente o número de prescrições relativas aos animais pertencentes a proprietários da cidade, ou destinados ao consumo dos burgueses.

A isto teremos de acrescentar as aves de capoeira, que eram engordadas como se fazia desde a mais alta Antiguidade: os fígados de ganso e as carnes em conserva faziam então parte dos menus de festa, tal como hoje.

A caça fornecia abundantes recursos, em florestas mais extensas do que hoje em dia e muito ricas em caça.

Há uma infinidade de processos para apanhar a caça, desde os laços ou vulgares anéis até às aves de rapina especialmente treinadas, passando pelas diversas armadilhas, redes e engenhos tais como o arco, a sarabatana, a arbaleta.

Apanhavam-se também as perdizes com isca, e caçavam-se com cães o veado e o javali. Assim, a montaria fazia parte da alimentação corrente.

Em fins da Idade Média o senhor tende a reservar para si o direto de caça no seu domínio, como hoje em dia fazem os proprietários e o próprio Estado.

Mas o pessoal que o auxilia durante as grandes batidas — monteiros, falcoeiros, criados e camponeses — participa dos benefícios das suas realizações. Isso vê-se correntemente nos romances e quadros da época.

Os laticínios fazem igualmente parte da alimentação, e as nossas manteigas e queijos adquirem já desde então o seu renome: queijos gordos de Champagne ou de Brie, anjinhos da Normandia.

Nesta região, a manteiga é praticamente a única matéria gorda usada na cozinha. Como o uso de toda gordura animal é proibido durante a Quaresma, os habitantes obtêm dispensas especiais, por não lhes ser possível obter óleo em quantidade suficiente.

As esmolas prescritas para garantir essa dispensa serviram por vezes para a edificação das igrejas — esta a origem do nome que tem em Rouen a Torre da Manteiga.

Mas trata-se de um caso particular, pois a oliveira encontra-se aclimatada quase em todo a França, o azeite é muito apreciado e entra na composição de vários remédios, como o vinho.

Só ele é autorizado nos dias magros então numerosos, de severa abstinência que se estende igualmente aos ovos.

Durante a Quaresma endurecem-se os ovos que as galinhas põem, para os conservar, e são apresentados à bênção do padre durante as cerimônias de Sexta-Feira Santa, costume que deu origem aos ovos da Páscoa.

As mesmas necessidades da abstinência conduziam os nossos antepassados a consumirem muito peixe. Todos os castelos possuem então um viveiro anexo onde percas, tencas, enguias e cadozes são objeto de uma autêntica cultura.

Também os lagos são cultivados, tal como ainda hoje se pratica numa província como Brenne, e a pesca é seguida por um repovoamento metódico.

A pesca marítima nas costas é uma indústria muito viva, e as associações de pescadores desempenham um papel importante quase em toda parte.

Nas margens do Mediterrâneo, numerosas prescrições asseguram-lhes uma espécie de monopólio da venda do peixe, para proteger o seu comércio contra o dos simples revendedores.

Em Marselha, por exemplo, os revendedores só podem oferecer as suas mercadorias a partir do meio-dia.

É deixada livre a venda dos pequenos peixes, pescados com uma rede de malha fina chamada bourgin — sardinhas, girelas, que se distinguem dos peixes maiores como a cavala ou a dourada, e sobretudo o atum, cuja pesca é muito abundante nas redondezas imediatas do porto.

Sabe-se conservar o peixe e a carne, e os “mercadores de água” que remontam o Sena trazem todos os dias para Paris barris cheios de arenques salgados ou defumados. Um prato comum na época é o craspois, sem dúvida uma variedade de baleia.

Vêm por fim os legumes, que lisonjeiam menos o palato e são por isso a alimentação mais ou menos exclusiva dos monges, a quem o seu estado prescreve a sobriedade e as mortificações.

Comia-se então muitas favas e ervilhas, que desempenhavam o papel das nossas batatas. Para se queixar do seu mau casamento e exprimir a malignidade da sua mulher, Mahieu de Boulogne não sabe dizer nada de melhor que a estrofe seguinte:

Nous sommes comme chien et leu [loup]
Qui s'entrerechignent ès bois,
Et si je veux avoir des pois
Elle fera de la purée!

Somos como cão e lobo
Que se engalfinham nos bosques,
E se eu quero comer ervilhas
Ela fará purê!

São conhecidas diversas variedades de couves: brancas, repolhos, orelha-de-burro. De alfaces, o Ménagier de Paris cita a de França e a de Avignon como sendo as mais apreciadas. Espinafres, azedas, acelgas, abóboras, alho-poró, nabos, rábanos fazem parte da alimentação corrente.

Temos de lhes acrescentar as plantas condimentares, então muito utilizadas para realçar o sabor das carnes e dos legumes: salsa, manjerona, segurelha, basilisco, funcho, hortelã, sem contar as especiarias encomendadas do Oriente em quantidades cada vez maiores, sobretudo a pimenta, tão preciosa que servirá por vezes como uma espécie de moeda.

Algumas comunas mercantis se servirão dela para fazer os seus pagamentos, por exemplo, às casas das ordens militares.

As frutas são então muito apreciadas: peras e maçãs, das quais se sabe extrair a cidra e a perada.

O marmelo passa por ser uma planta medicinal, e dele se faz uma refinada compota. Sobretudo em Orleans, as cerejas e ameixas se põem a secar, tal como as uvas e os figos, e são usadas nos patês e nas conservas de carne, costume que se manteve até aos nossos dias em algumas regiões, principalmente no norte de França.

O pêssego e o damasco, introduzidos pelos árabes, eram já muito apreciados no tempo das cruzadas, mas os morangos e as framboesas permaneceram por muito tempo selvagens e só foram cultivados a partir do século XVI.

Muito antes já se vendiam castanhas nas ruas de Paris, e desde o século XIV se tentava aclimatar as laranjeiras ao nosso solo. Também as amêndoas, nozes e avelãs tinham especial preferência e serviam para a preparação de manjares.

Enfim, desde a Antiguidade eram apreciados os recursos da floresta: castanhas, frutos da faia-do-norte, morangos, abrunhos, etc.

(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)



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