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Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs
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Por mais admirável que vos pareça a Paris do presente, refazei a Paris do século XV, reconstruí-a em vosso pensamento; olhai o dia através deste renque surpreendente de agulhas, de torres e de campanários, espalhai-o no meio da imensa cidade, rasgai-o nas pontas das ilhas, dobrai-o sob os arcos das pontes do Sena, com suas grandes manchas verdes e amareladas, mais mutável que uma pele de serpente, destacai nitidamente sobre o horizonte azulado o perfil gótico dessa velha Paris, fazei flutuar o contorno em uma bruma de inverno que se agarra em suas numerosas chaminés.
Afogai-o em uma noite profunda, e olhai o jogo bizarro das trevas e da luz nesse sombrio labirinto de edifícios; jogai aí um raio de lua que o delineie vagamente e fazei sair do nevoeiro as grandes cabeças das torres, ou retomai essa negra silhueta e escurecei de sombra os mil ângulos agudos das flechas e dos pinhões dos telhados e fazei-a sobressair, mais rendada que um pescoço enlutado, sobre o céu de cobre do poente.
E, depois, comparai.
E se vós quiserdes receber da velha cidade uma impressão que a moderna não vos pode dar, subi, numa manhã de grande festa, ao sol levante da Páscoa ou de Pentecostes, subi até algum ponto elevado de onde domineis a capital inteira, e assisti ao despertar dos carrilhões.
Vede, a um sinal partido do céu, porque é o sol que o dá, essas mil igrejas estremecerem ao mesmo tempo.
Primeiro, tinidos esparsos, indo de uma igreja à outra, como quando os músicos se avisam que vão começar; depois de repente vede – porque parece que em certos instantes o ouvido tem também sua vista – elevar-se, no mesmo momento, de cada campanário uma coluna de barulho, como uma fumaça de harmonia.
Clique para ouvir o antigo carrilhão das horas em Notre Dame de PARIS:
Antes, a vibração de cada sino sobe reta, pura e por assim dizer isolada dos outros nesse céu esplêndido da manhã.
Depois, pouco a pouco crescendo, elas se fundem, misturam-se, desfazem-se umas nas outras, amalgamam-se em um magnífico concerto.
Clique para ouvir os sinos da torre norte da catedral de Notre Dame de PARIS:
Não é mais senão uma massa de vibrações sonoras que se desprende sem cessar dos inumeráveis campanários; massa que flutua, ondula, salta, turbilhona sobre a cidade, e prolonga bem além do horizonte o círculo ensurdecedor de suas oscilações.
Contudo, esse mar de harmonia não é de nenhuma maneira um caos. Por maior o mais profundo que seja, ele não perdeu sua transparência.
Clique para ouvir o Bourdon (o sino mor) da Catedral Notre Dame de PARIS:
Vede-os serpentear à parte cada grupo das notas que escapa dos toques; podeis seguir o diálogo, alternadamente grave e agudo, do pequeno e do grande sino; vedes saltar as oitavas de um campanário a outro; lançando-se aladas, ligeiras, murmurantes do sino de prata, e caindo quebradas e claudicantes do sino de madeira; admirais no meio delas a variedade rica que desce e sobe sem cessar dos sete sinos de Saint-Eustache; vedes correr no meio de tudo notas claras e rápidas que fazem três ou quatro zig-zags luminosos e desaparecem como relâmpagos.
Ali é a abadia Saint Urtin, cantora amarga e desafinada; aqui, a voz sinistra e rouca da Bastilha; na outra extremidade, a larga Torre do Louvre, com sua terceira voz.
O carrilhão real do Palácio lança sem descanso de todos os lados trilhas resplandecentes sobre as quais caem a tempos iguais os pesados golpes da torre de Notre-Dame, que as fazem faiscar como a bigorna sob o martelo.
Por intervalos vedes passar sons de toda forma que vêm do tríplice carrilhão de Saint-Germain-des-Prés.
Após, ainda de tempos em tempos, essa massa de barulhos sublimes se entreabre e dá passagem a parte final da Ave Maria que estoura e corusca como uma ‘aigrette' de estrelas.
Abaixo, no mais profundo do concerto, distinguis confusamente o canto interior das igrejas que transpira através dos poros vibrantes de suas ogivas. Certamente, essa é uma ópera que vale a pena ser escutada.
Habitualmente, o ruído que sai de Paris de dia, é a cidade que fala; da noite, é a cidade que respira; aqui é a cidade que canta.
Atentai a esse ‘tutti’ dos campanários, espalhai sobre o conjunto o murmúrio do meio milhão de homens, o queixume eterno do rio, o sopro infindo do vento, o quarteto grave e longínquo das quatro florestas dispostas sobre as colinas do horizonte como imensos tecladas de órgão, extingui assim em uma meia-voz tudo o que o carrilhão central teria de muito rouco e muito agudo, e dizei se conheceis no mundo alguma coisa de mais rico, de mais alegre, de mais dourado, de mais resplandecente do que esse tumulto de sinos e de torres; do que essa fornalha de música; do que essas dez mil vozes de bronze cantando ao mesmo tempo em flautas de pedra, altas de trezentos pés.