Casas camponesas em Veules-les-roses, Normandia Os antepassados foram piratas, os filhos deitaram raízes da terra e forjaram uma civilização. |
E foi assim que se formou a França, obra desses milhares de famílias obstinadamente fixadas ao solo, no tempo e no espaço.
Francos, borguinhões, normandos, visigodos, todos esses povos móveis, cuja massa instável faz da Alta Idade Média um caos tão desconcertante, formavam desde o século X uma nação solidamente ligada à sua terra, unida por laços mais seguros que todas as federações cuja existência se proclamou.
O esforço renovado dessas famílias microscópicas deu origem a uma vasta família, um macrocosmo, cuja brilhante administração a linhagem capetiana simboliza maravilhosamente, conduzindo durante três séculos de pai para filho, gloriosamente, os destinos da França.
É certamente um dos mais belos espetáculos que a história pode oferecer, essa família sucedendo-se em linha direta acima de nós, sem interrupção, sem desfalecimento, durante mais de trezentos anos — tempo equivalente ao que transcorreu desde o rei Henrique IV até a guerra de 1940.
Mas o que importa compreender é que a história dos Capetos diretos é apenas a história de uma família francesa entre milhões de outras.
Esta vitalidade, esta persistência na nossa terra, todos os lares de França a possuíram num grau mais ou menos equivalente, exceção feita a acidentes ou acasos, inevitáveis na existência.
A Idade Média, saída da incerteza e do desacordo, da guerra e da invasão, foi uma época de estabilidade, de permanência no sentido etimológico da palavra.
Isto se deve às instituições familiares, tais como as expõe o nosso direito consuetudinário.
Nelas se conciliam, com efeito, o máximo de independência individual e o máximo de segurança.
Cada indivíduo encontra em casa a ajuda material, e na solidariedade familiar a proteção moral de que pode ter necessidade.
Ao mesmo tempo, a partir do momento em que se basta a si próprio, ele é livre para desenvolver a sua iniciativa, “fazer a sua vida”, nada entrava a expansão da sua personalidade.
O castelo de Rambures é outro exemplo da Normandia. Uma família nobre abriu o que nós chamaríamos uma 'fazenda'. |
Ou também como a experiência pessoal, tesouro incomunicável que cada um deve forjar para si próprio, e que só é válido desde que lhe pertença.
É evidente que tal concepção da família basta para fazer todo o dinamismo e também toda a solidez de uma nação.
A aventura de Robert Guiscard e dos irmãos — filhos-segundos de uma família normanda excessivamente pobre e excessivamente numerosa, que emigra, torna-o rei da Sicília e funda aí uma dinastia poderosa — eis o próprio tipo da história medieval, toda feita de audácia, sentimento familiar e fecundidade.
O direito consuetudinário, que fez a força do nosso país, opunha-se nisso diretamente ao direito romano, no qual a coesão da família se deve apenas à autoridade do chefe, estando todos os membros submetidos a uma rigorosa disciplina durante toda a vida — concepção militar, estatista, repousando sobre uma ideologia de legistas e de funcionários, não sobre o direito natural.
Comparou-se a família nórdica a uma colméia que se desloca periodicamente e se multiplica, renovando os terrenos de colheita; e a família romana a uma colméia que não enxamearia nunca.
Sobre a família “medieval” se disse também que ela formava pioneiros e homens de negócios, enquanto a família romana dava nascimento a militares, administradores, funcionários.
É curioso seguir ao longo dos séculos a história dos povos formados nessas diferentes disciplinas, e verificar os resultados a que chegaram.
A expansão romana tinha sido política e militar, e não étnica. Os romanos conquistaram pelas armas um império e o conservaram por intermédio dos seus burocratas.
Esse império só foi sólido enquanto soldados e funcionários puderam vigiá-lo facilmente. Mas não parou de crescer a desproporção entre a extensão das fronteiras e a centralização, que é o fim ideal e a conseqüência inevitável do direito romano.
O Império desabaria por si próprio, pelas suas próprias instituições, quando o ímpeto das invasões lhe veio dar o golpe de misericórdia.
Podemos opor a este exemplo o das raças anglo-saxônicas. Os seus costumes familiares foram idênticos aos nossos durante toda a Idade Média.
Contrariamente ao que se passou entre nós, eles os mantiveram, e é isso sem dúvida que explica a sua prodigiosa expansão através do mundo.
Casas populares na Alemanha. |
O Renascimento retomou o conceito pagão romano da família e afundou a ordem medieval
Os países germânicos, que nos forneceram em grande parte os costumes que a nossa Idade Média adotou, cedo se impuseram o direito romano.
Os seus imperadores estavam em situação de retomar as tradições do Império do Ocidente. Julgavam que o Direito Romano lhes fornecia um excelente instrumento de centralização para unificar as vastas regiões que lhes estavam submetidas.
Portanto, desde muito cedo foi aí posto em prática, e desde o fim do século XIV constituía definitivamente a lei comum do Sacro Império, ao passo que na França a primeira cadeira de Direito Romano só foi instituída na Universidade de Paris em 1679. Por isso a expansão germânica foi mais militar que étnica.
A França foi sobretudo modelada pelo direito consuetudinário.
É certo que temos o hábito de designar o sul do Loire e o vale do Reno como “regiões de direito escrito”, isto é, de direito romano, mas isso significa que os costumes dessas províncias se inspiraram na lei romana, não que o Código Justiniano tenha aí vigorado.
Durante toda a Idade Média a França manteve intactos os seus costumes familiares, as suas tradições domésticas. Somente a partir do século XVI as nossas instituições, sob a influência dos legistas, evoluem num sentido cada vez mais “latino”.
A transformação se opera lentamente, e começa a notar-se em pequenas modificações. A família francesa remodela-se sobre uma base estatista, que ainda não tinha conhecido.
A maioridade é concedida aos vinte e cinco anos, como na Roma antiga, pois aí o filho encontrava-se em perpétua menoridade em relação ao pai, e não havia inconveniente em que ela fosse proclamada bastante tarde.
Ao casamento — considerado até então como um sacramento, com a adesão de duas vontades livres para a realização do seu fim — vem acrescentar-se a noção do contrato, do acordo puramente humano, tendo como base estipulações materiais.
Ao mesmo tempo que o pai de família concentra rapidamente nas suas mãos todo o poder familiar, o Estado encaminha-se para a monarquia absoluta.
As famílias burguesas geraram verdadeiras obras primas de aconchego defendendo zelosamente a propriedade familiar. Foto: Dornstetten, Alemanha. |
O que Napoleão fez foi apenas concluir a obra, instituindo o Código Civil e organizando o exército, o ensino — toda a nação — sobre o ideal funcionarista da Roma antiga.
O direito de propriedade se torna cada vez mais absoluto e individual. Os últimos traços de propriedade coletiva desapareceram no século XIX, com a abolição dos direitos comunais e de terras baldias.
Podemos, aliás, perguntar se o direito romano, quaisquer que sejam os seus méritos, convinha às características da nossa raça, à natureza da nossa terra.
Poderia esse conjunto de leis, forjadas em todos os elementos por legistas e por militares — essa criação doutrinal, teórica, rígida — substituir sem inconvenientes os nossos costumes elaborados pela experiência de gerações, lentamente moldados à medida das nossas necessidades?
Poderia ele substituir os nossos costumes, que nunca foram nada mais que os nossos próprios hábitos, os usos de cada indivíduo — ou, melhor ainda, do grupo de que cada um fazia parte — constatados e formulados juridicamente?
O Direito Romano descristianizado minou a família
O Direito Romano tinha sido concebido por um Estado urbano, não por uma região rural. Falar da Antiguidade é evocar Roma ou Bizâncio, mas para fazer reviver a França medieval é preciso evocar não Paris, mas a Ilha de França; não Bordéus, mas a Guiana; não Rouen, mas a Normandia.
Não podemos concebê-la senão nas suas províncias, de solo fecundo para belo trigo e bom vinho. É um fato significativo, durante a Revolução Francesa, ver quem antes se chamava manant (aquele que fica) tornar-se o cidadão, pois em cidadão há cidade.
Compreende-se, já que a cidade iria deter o poder político, o poder principal, e tendo deixado de existir o costume, a partir daí tudo deveria depender da lei.
As novas divisões administrativas da França — os departamentos, que giram todos à volta de uma cidade, sem ter em conta a qualidade do solo dos campos que a ela se ligam — manifestam bem esta evolução de estado de espírito.
Nessa época a vida familiar estava suficientemente enfraquecida para que pudessem estabelecer-se instituições tais como o divórcio, a alienabilidade do patrimônio ou as leis modernas sobre as sucessões.
As liberdades privadas, das quais antes tinham sido tão ciosos, desapareciam perante a concepção de um Estado centralizado à maneira romana.
Talvez devêssemos procurar aí a origem de problemas que depois se puseram de modo tão agudo: problemas da infância, educação, família, natalidade.
Eles não existiam na Idade Média, porque a família era então uma realidade que possuía para sua existência a base material e moral e as liberdades necessárias.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
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