segunda-feira, 20 de maio de 2024

O medieval era ignorante ou tinha uma sabedoria superior?
O ensino na Idade Média – 7

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








continuação do post anterior

Nestas condições, podemos perguntar-nos se na Idade Média o povo era tão ignorante como em geral se supõe.

Ele tinha ao seu alcance, incontestavelmente, os meios de se instruir, e a pobreza não era um obstáculo, uma vez que o custeio dos estudos podia ser inteiramente gratuito, da escola da aldeia (ou antes, da paróquia) até à universidade.

E ele aproveitava-se disso, uma vez que abundam os exemplos de pessoas humildes tornadas grandes clérigos.

Significa isto que a instrução estava tão divulgada como nos nossos dias?

Parece que sobre este ponto houve um mal-entendido, pois mais ou menos se confundiu a cultura com a letra, pois para nós um iletrado é fatalmente um ignorante.

O número de iletrados era sem dúvida maior na Idade Média do que na nossa época. (De fato é bem menos do que se disse, uma vez que a maior parte das testemunhas que intervêm nos atos notariais sabem assinar; e entre outros exemplos tem-se o de Joana d’Arc, pequena camponesa que contudo sabia escrever.)

 Mas é justo este ponto de vista? O alfabeto pode ser tomado como único critério da cultura? Do fato de a educação se ter tornado sobretudo visual, pode-se concluir que o homem apenas se educa pela visão?

Num capítulo dos estatutos municipais de Marselha, datando do século XIII, depois de enumerar as qualidades exigidas de um bom advogado, acrescenta-se litteratus vel non litteratus (quer seja letrado, quer não).

Isto parece muito significativo, pois pode-se ser um bom advogado sem saber ler nem escrever, ou seja, conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem e ignorar o alfabeto.

Noção que nos é difícil de admitir, mas que contudo é de importância capital para compreender a Idade Média.

Era-se mais instruído então pelo ouvido do que pela leitura.

Por muito honrados que sejam, os livros e os escritos têm apenas um lugar secundário.

O papel de primeiro plano é reservado à palavra, ao verbo, em todas as circunstâncias da vida.

Nos nossos dias, oficiais e funcionários redigem relatórios, mas na Idade Média aconselham-se e deliberam.

Uma tese não é uma obra impressa, é uma discussão; a conclusão de um ato não é uma assinatura aposta ao fim de um escrito, é a tradição manual ou empenhamento verbal; governar é informar-se, inquirir, depois fazer proclamar as decisões.
 

(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge” - Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)

FIM



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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Viagens, desportes, festas, mas formação profunda para triunfar na vida.
O ensino na Idade Média – 6

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








continuação do post anterior

Ao sair das suas sessões de trabalho na faculdade e no colégio, o estudante medieval é um desportista capaz de percorrer caminhos de várias léguas, e também — os anais da época o lastimam demais — de manejar a espada.

Por vezes, nessa população turbulenta rebentam rixas nos arredores de Sainte-Geneviève ou de Saint-Germain-des-Prés, e é por ter sabido servir-se da sua arma demasiado bem que François Villon teve de deixar Paris.

Os exercícios físicos são-lhe tão familiares como as bibliotecas. 

Mais ainda que nos outros corpos de ofícios, a sua vida suaviza-se com festas e divertimentos que alegram o Quartier Latin.

Sem falar da Festa dos Loucos ou a dos Tolos, que são ocasiões excepcionais, não há recepção de doutor que não seja seguida de cerimônias paródicas, nas quais os graves professores da Sorbonne participam.

Ambroise de Cambrai, que foi chanceler da Faculdade de Decreto, tomou o seu papel a peito e deixou-nos o relato delas nas apreciações críticas pormenorizadas que empreendeu durante o tempo em que ocupou o seu cargo.

Notamos que a Idade Média não conhece fosso entre ofícios manuais e profissões liberais. Os termos são, a este propósito, significativos: qualifica-se de mestre tanto o fabricante de tecidos que terminou a sua aprendizagem como o estudante de teologia que obteve a licença de ensino.

Um ser assim formado estava tão preparado para a ação como para a reflexão, e é sem dúvida por isso que se vê nessa época as personalidades adaptarem-se às situações mais diversas e triunfar.

Prelados combatentes, como Guillaume des Barres ou Guérin de Senlis na batalha de Bouvines; juristas capazes de organizar a defesa de um castelo, como Jean d’Ibelin, senhor de Beyrouth; mercadores exploradores, ascetas construtores, etc.

A universidade foi o grande orgulho da Idade Média. Os papas falam com benevolência desse “rio de ciência que, através das suas múltiplas derivações, irriga e fecunda o terreno da Igreja universal”.

Nota-se, não sem satisfação, que em Paris a multidão dos estudantes é tal que o seu número chega a ultrapassar o da população. 

É-se cheio de indulgência por eles, e gozam da simpatia geral apesar das suas ”gracinhas” e pilhérias, que frequentemente incomodam os burgueses.

Algumas cenas da sua vida foram descritas por um dos escultores do portal Saint-Étienne, em Notre-Dame de Paris: Vemo-los a ler e estudar; uma mulher vem perturbá-los, e arranca-os dos seus livros; para a punir, é colocada no pelourinho por ordem da autoridade.

Os reis dão o exemplo desse modo de tratar os “escolares” como meninos mimados: Filipe Augusto, depois da batalha de Bouvines, mandou um mensageiro anunciar a sua vitória em primeiro lugar aos estudantes parisienses.


Tudo o que respeita ao saber é assim honrado na Idade Média: “Com desonra morra merecidamente quem não gosta de livro”, dizia um provérbio.

Basta inclinarmo-nos sobre os textos para encontrar sinal das medidas pelas quais qualquer apetite de ciência era encorajado e alimentado.

Entre outras, citamos a criação em 1215 de uma cátedra de teologia em Paris, especialmente para permitir aos padres da diocese aperfeiçoarem-se e completarem os seus estudos, o que testemunha a preocupação de manter um grau elevado de instrução, mesmo no baixo clero.

O “homem avisado”, esse tipo de homem completo que foi o ideal do século XIII, devia ser necessariamente um letrado.
 

(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge” - Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)

Continua no próximo post



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segunda-feira, 6 de maio de 2024

O quê se estudava nas Universidades?
O ensino na Idade Média – 5


Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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continuação do post anterior

O ensino é dado em latim. Divide-se em dois ramos: o trivium ou artes liberais – gramática, retórica e lógica; e o quadrivium, quer dizer, as ciências – aritmética, geometria, música e astronomia.

Com as três faculdades de Teologia, Direito e Medicina, eles formam o ciclo dos conhecimentos.

Como método, utiliza-se sobretudo o comentário. Segundo a matéria ensinada, lê-se um texto — as Étymologies (Etimologias) de Isidoro de Sevilha, as Sentences (Sentenças) de Pedro Lombardo, um tratado de Aristóteles ou de Sêneca — e glosa-se o texto, fazendo todas as observações às quais ele pode dar lugar, do ponto de vista gramatical, jurídico, filosófico, linguístico, etc.

Portanto esse ensino é sobretudo oral, dá espaço importante à discussão — questiones disputate — de assuntos na ordem do dia, tratados e discutidos pelos candidatos na licenciatura perante um auditório de professores e alunos.

Alguns deram lugar a tratados completos de filosofia ou de teologia, e glosas célebres, passadas por escrito, eram comentadas e explicadas na continuação dos cursos.

As teses defendidas pelos candidatos ao doutoramento não são então simples exposições sobre uma obra inteiramente redigida, mas teses emitidas e defendidas perante todo um anfiteatro de doutores e de professores, durante as quais qualquer assistente pode tomar a palavra e apresentar as suas objeções.

Como se vê, esse ensino apresenta-se sob uma forma sintética, sendo cada ramo recolocado num conjunto onde adquire um valor próprio, correspondendo à sua importância para o pensamento humano.

Por exemplo, há nos nossos dias equivalência entre uma licenciatura em filosofia e uma licenciatura em espanhol ou inglês, ainda que a formação suposta por estas diferentes disciplinas se coloque num plano muito diferente.

Na Idade Média se pode ser mestre de filosofia, teologia ou direito, ou ainda mestre em artes, o que implica o estudo do conjunto ou do essencial dos conhecimentos relativos ao homem, representando o trivium as ciências do espírito, e o quadrivium as dos corpos e dos números que os regem.

Toda a série de estudos se aplica, portanto, a dar uma cultura geral, e só se faz realmente uma especialização ao sair da faculdade. 

É isto que explica o caráter enciclopédico dos sábios e dos letrados da época.

 Um Roger Bacon, um Jean de Salisbury, um Alberto Magno dominaram realmente os conhecimentos da época e podem entregar-se sucessivamente aos mais diferentes assuntos sem temer a dispersão, pois a sua visão de base é uma visão de conjunto.
 

(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge” - Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)

Continua no próximo post



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