Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs
A família é o ponto de partida da vida.
E quando a vida da família se projeta na vida social injeta nela sua vitalidade.
Nasce assim uma sociedade orgânica e viva, por contraposição a uma sociedade inorgânica e morta típica dos totalitarismos modernos.
Para termos uma idéia não apenas teórica, mas viva, do que seja uma sociedade orgânica, seria interessante remontarmos a alguns séculos atrás.
Quando o Império Romano vivia ainda no esplendor de sua glória e na pujança de suas instituições administrativas e jurídicas, era ele sulcado por estradas admiravelmente bem traçadas.
Muitas dessas estradas, ao menos em parte, ainda subsistem em nossos dias.
Mas quando os bárbaros invadiram o Império, a incultura apoderou-se de toda a Europa.
O poderoso e estruturado Estado romano ruiu, as estradas começaram a ser pouco freqüentadas e se deterioraram.
Por assim dizer, cada cidade transformou-se numa ilhota.
A família von Kurneber guiava um vasto conjunto de almas
E cada ilhota dessas era como uma espécie de unidade econômica auto-suficiente, em que os habitantes eram obrigados a tirar todos os meios, todos os recursos do próprio solo para viver.
Dessa maneira estruturou-se numa economia de subsistência direta, sem comércio.
E por causa disso, também a vida de alma da pequena comunidade foi tomando uma configuração típica e inconfundível.
Em cada lugar começa a aparecer uma arquitetura própria, uma indumentária própria, trajes regionais próprios, os dialetos vão se formando.
Por outro lado, os costumes vão se diferenciando, e nos primórdios dos séculos XI e XII encontramos a Europa toda transformada num mosaico de pequenos mundos avulsos, cada um estuante de vitalidade própria.
Dessa vitalidade podemos bem ter uma ideia se nos reportamos ao que dela ainda existe hoje.
Todo turista que vai à Europa encanta-se em conhecer os trajes regionais, as arquiteturas regionais as danças regionais que são remotos e resistentes resquícios exatamente dessa proliferação de variedades da Idade Média.
Remotos resquícios que nos dão ideia de como em cada lugar, em cada ponto, foi se formando como que uma cultura própria e uma civilização própria.
Tal proliferação de vida estuante, como se vê bem, não era produto de uma planificação, de um decreto, de uma portaria que vinha de cima.
Cada família e região gerava seu estilo de roupas e apresentação.
Na foto, vestimentas típicas de uma aldeia da Bretanha, França.
Muito pelo contrário, vinha de baixo para cima, sem necessidade de intervenções estatais federais, estaduais, municipais. Essa vida plena vinha da vida de família.
Eram os indivíduos, eram as famílias que, em coletividades muito pequenas, onde o Poder Público se afirmava pouco, naturalmente comunicavam a sua força vital e a sua influência ao ambiente.
E era, portanto, uma ordem de coisas em que o indivíduo, a família, o costume lideravam muito mais do que a autoridade jurídica propriamente constituída.
(Autor: Plnio Corrêa de Oliveira, "Catolicismo", maio de 2002)
A herança familiar de pai para filho garantiu a estabilidade e a prosperidade das famílias
em todas as classes sociais. Na foto cottage (casa camponesa) em Spring-Garden, Inglaterra.
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Não deixar o patrimônio enfraquecer, tal é realmente o fim a que visam todos os costumes medievais.
Por isso havia sempre um único herdeiro, pelo menos para os feudos nobres. Temia-se a fragmentação que empobrece a terra, dividindo-a ao infinito.
O parcelamento foi sempre fonte de discussões e de processos, além de prejudicar o cultivador e dificultar o progresso material, pois é necessário um empreendimento de certa importância para poder aproveitar os melhoramentos que a ciência ou o trabalho põem ao alcance do camponês, ou para poder suportar eventuais fracassos parciais, e em qualquer caso fornecer recursos variados.
O grande domínio, tal como existe no regime feudal, permite uma sábia exploração da terra. Pode-se deixar periodicamente uma parte em repouso, dando-lhe tempo para se renovar, e também variar as culturas, mantendo de cada uma delas uma harmoniosa proporção.
A vida rural foi extraordinariamente ativa durante a Idade Média, e grande quantidade de culturas foi introduzida na França durante essa época. Isso foi devido, em grande parte, às facilidades que o sistema rural da época oferecia ao espírito de iniciativa da nossa raça.
O camponês de então não é nem um retardatário nem um rotineiro. A unidade e a estabilidade do domínio eram uma garantia tanto para o futuro como para o presente, favorecendo a continuidade do esforço familiar.
Nos nossos dias, quando concorrem vários herdeiros, é preciso desmembrar o fundo e passar por toda espécie de negociações e de resgates, para que um deles possa retomar a empresa paterna.
A exploração cessa com o indivíduo, mas o indivíduo passa, enquanto o patrimônio fica, e na Idade Média tendia-se para residir.
Se existe uma palavra significativa na terminologia medieval, essa palavra é mansão senhorial (manere, o lugar onde se está), o ponto de ligação da linhagem, o teto que abriga os seus membros passados e presentes, e que permite às gerações sucederem-se pacificamente.
Bem característico também é o emprego dessa unidade agrária que se denomina manse — extensão de terra suficiente para que uma família possa nela fixar-se e viver.
Senhores ou camponeses, a preocupação fundamental é a mesma: preservar e transmitir integra e melhorada a herança dos antepassados Na foto o pequeno castelo de Caithness, na Grã-Betanha
Variava naturalmente com as regiões: um cantinho de terra na gorda Normandia ou na rica Gasconha traz mais ao cultivador que vastas extensões na Bretanha ou no Forez.
A manse tem pois uma extensão muito variável conforme o clima, as qualidades do solo e as condições de existência. É uma medida empírica e — característica essencial — de base familiar, não individual, resumindo por si só a característica mais saliente da sociedade medieval.
Assegurar à família uma base fixa e ligá-la ao solo de qualquer forma, para que aí tome raízes, dê fruto e se perpetue, tal é a finalidade dos nossos antepassados.
Pode-se traficar com as riquezas móveis e dispô-las por testamento, porque por essência são mutáveis e pouco estáveis. Pelas razões inversas, os bens fundiários [N.T.: propriedades rústicas ligadas à terra, à agricultura, que são a base da economia medieval] são propriedade familiar, inalienáveis e impenhoráveis.
O homem não é senão o guardião temporário, o usufrutuário. O verdadeiro proprietário é a linhagem.
Uma série de costumes medievais decorrem dessa preocupação de salvaguardar o patrimônio de família.
Assim, em caso de falta de herdeiro direto os bens de origem paterna voltam para a família do pai, e os de origem materna para a da mãe, enquanto no direito romano só se reconhecia o parentesco por via masculina.
É o que se chama direito de retorno, que desempata de acordo com a sua origem os bens de uma família extinta.
Do mesmo modo, o asilo de linhagem dá aos parentes mesmo afastados o direito de preferência, quando por uma razão ou por outra um domínio é vendido.
A maneira como é regulada a tutela de uma criança que ficou órfã apresenta também um tipo de legislação familiar. A tutela é exercida pelo conjunto da família, e torna-se naturalmente tutor aquele cujo grau de parentesco designa para administrar os bens.
O nosso conselho de família é apenas um resíduo do costume medieval que regulava o arrendamento dos feudos e a guarda das crianças.
Na Idade Média se tem viva a preocupação de respeitar o curso natural das coisas, de não criar prejuízos quanto aos bens familiares, tanto que, no caso em que morram sem herdeiro aqueles que detêm determinados bens, o seu domínio não pode voltar para os ascendentes.
Procuram-se os descendentes mesmo afastados, primos ou parentes, evitando voltar esses bens para os que tiveram antes a sua posse: “Bens próprios não voltam para trás”.
Tudo isso pelo desejo de seguir a ordem normal da vida, que se transmite do mais velho para o mais novo e não volta para trás: os rios não voltam à nascente, do mesmo modo os elementos da vida devem alimentar aquilo que representa a juventude, o futuro.
A família é a detentora da propriedade. Seus membros são os guardiões
que devem transmiti-la e não podem aliená-la nem fazer o que bem entendem.
Esta é mais uma garantia para o patrimônio da linhagem, que se transfere necessariamente para seres jovens, portanto mais ativos e capazes de o fazer valer mais longamente.
Por vezes, a transmissão dos bens faz-se de uma forma muito reveladora do sentimento familiar, que é a grande força da Idade Média.
A família (aqueles que vivem de um mesmo “pão e pote”) constitui uma verdadeira personalidade moral e jurídica, possuindo em comum os bens cujo administrador é o pai.
Pela sua morte, a comunidade reconstitui-se com a orientação de um dos filhos, designado portanto pelo sangue, sem que tenha havido interrupção da posse dos bens nem transmissão de qualquer espécie.
É aquilo a que se chama a comunidade silenciosa, de que faz parte qualquer membro da casa de família que não tenha sido expressamente posto “fora do pão e pote”.
O costume subsistiu até ao fim do Antigo Regime, e podem-se citar famílias francesas que durante séculos nunca pagaram o mínimo direito de sucessão. Em 1840, o jurista Dupin assinalava nessa situação a família Jault, que não o pagava desde o século XIV.
Em todos os casos, mesmo fora da comunidade silenciosa, a família, considerada no seu prolongamento através das gerações, permanece o verdadeiro proprietário dos bens patrimoniais.
O pai de família que recebeu esses bens dos antepassados deve dar conta deles aos seus descendentes. Seja servo ou senhor, nunca é o dono absoluto.
Reconhece-se a ele o direito de usar, não o de consumir, e tem além disso o dever de defender, proteger e melhorar a sorte de todos os seres e coisas dos quais foi constituído o guardião natural.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)
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